quinta-feira, 29 de outubro de 2009

OS LIMITES DA RETÓRICA DO MERCADO

Polêmica mundial envolvendo campanha de agência brasileira mostra a dificuldade em controlar a interpretação dos consumidores


O anúncio Aviões, da WWF, provocou reações indignadas nos EUA contra a agência DM9DDB: texto insensível

Uma das mais tarimbadas agências do país, com vinte anos de janela, a DM9DDB se meteu num vespeiro, mês passado, com a repercussão mundial de uma campanha publicitária criada para a WWF, organização não governamental dedicada à conservação da natureza. A peça, composta pelo impresso Aviões e pelo filme Tsunami, lança uma centena de aviões contra o World Trade Center. No filme, a cena escurece para dar lugar a letreiros com a premissa retórica que sustenta o anúncio: "O tsunami matou 100 vezes mais pessoas do que o 11 de setembro". Em seguida, o apelo à reflexão: "Nosso planeta é poderoso. Respeite e preserve".

Além do erro conceitual (tsunamis são fenômenos geológicos, não relacionados à destruição da natureza pelo homem) e da premissa controversa (o paralelo entre ato terrorista e mudança ambiental), a campanha pôs em xeque um dos pilares da retórica publicitária desde a era dos reclames: a interpretação (programada) das mensagens que veicula.

Difícil localizar quem interpretou o anúncio da WWF, conforme o planejado pela DM9, como um alerta à devastação. Nos EUA, ela foi recebida antes como afronta ao sofrimento norte-americano no aniversário de oito anos do atentado. Foi condenada não só pela mídia especializada, como a revista nova-iorquina Advertising Age, mas por programas da rede NBC e pelo tradicional New York Times.

Na primeira semana de setembro, o caso virou um jogo de empurra entre a agência e o braço local da ONG. Em nota, a DM9DDB alegou que o anúncio foi "fruto somente da inexperiência" dos profissionais envolvidos "de ambas as partes". Por sua vez, o braço brasileiro do WWF divulgou que a peça havia sido rejeitada. Depois, em nota conjunta, ambos admitiram que o anúncio foi aprovado em dezembro de 2008, "equivocadamente".

Nenhum reparo prévio, no entanto, impediu que a peça fosse divulgada à imprensa por release da própria DM9, publicada num jornal de São Paulo antes de ter sua veiculação suspensa, inscrita no festival de Cannes e premiada com um diploma Merit pelo One Show, competição internacional da propaganda, o que deu lenha à repercussão mundial do caso. O prêmio foi cancelado, a pedido da agência, mas o estrago já havia sido potencializado por sites e blogs de todo o mundo.

Na era da internet, com blogs bisbilhoteiros e repercussão em escala, de site a site, a possibilidade de interpretação indesejada de mensagens publicitárias tem crescido exponencialmente. No início de setembro, a Unimed Porto Alegre viu um anúncio seu virar alvo de blogs de estudantes e publicitários. A campanha "Cuidar", desenvolvida pela agência Escala desde o início do ano, partia do conceito de que, para uma cooperativa de médicos, não mero plano de saúde, cuidar é tão importante quanto curar. Daí desenvolver a série de anúncios em que letras de palavras, como "trabalho", "respeito" e "amor", fossem substituídas pelo corpo humano. No caso de "cuidar", no entanto, a letra i deu lugar a uma modelo esguia e ereta, o suficiente para que blogueiros a vissem como um muro a separar um verbo de um substantivo indesejado.

A campanha da Unimed-RS, em que uma modelo substitui a letra i, dividindo a palavra "cuidar" em um verbo e um substantivo indesejado
Fora de contexto
A infeliz coincidência, no entanto, de circulação restrita pois publicada num caderno especial do jornal Zero Hora em 1º de setembro, para comemorar um prêmio recebido pela empresa, espalhou-se pela blogosfera, mas não teve repercussão negativa junto aos 450 mil usuários da Unimed, garante Eduardo Axelrud, diretor de criação da agência gaúcha.

- Tirada do contexto, a leitura inadvertida é de fato plausível. Mas para o consumidor, a palavra "cuidar" foi parte de uma sequência de outras palavras que integraram uma campanha de longa duração, que traduz a ideia de que "nossa vida é cuidar da sua", com a qual as pessoas têm familiaridade e entendimento já consolidado ao longo dos anos. Por isso, não teria havido margem a duplo sentido, nem a interpretações escatológicas ou pornográficas - afirma Axelrud.

A peça, lida isoladamente, descontextualizada, autorizaria a leitura indesejada. Mas, integrante de um conjunto de ações de marketing e de propaganda, o tropeço se "contamina" pela lógica interna das outras peças que integram a rede de mensagens de uma campanha. O que reduziria, diz Axelrud, a possibilidade de interpretação dúbia.

- O anúncio não nos constrangeu. Muito pouca gente que o viu deu atenção ao fato porque ele está num contexto maior de uma campanha que se prolongou no tempo - diz Gerson Luís Silva, gerente de marketing da Unimed Porto Alegre.

Funerária
A leitura de duplo sentido, porém, pode ser um efeito proposital de certas campanhas. Maior empresa funerária do Rio de Janeiro, com 10% do mercado carioca, a seguradora Sinaf criou uma tradição de humor negro publicitário. Para promover a empresa, a Comunicação Carioca criou uma campanha em 2003 com slogans de duplo sentido:

"Cremação: uma novidade quentinha da Sinaf."
"Nossos clientes nunca voltaram para reclamar."
"O seguro de vida que você vai dar graças a Deus. Pessoalmente."
"Como planejar a morte da sua sogra."

Apesar de produzir mensagens no limite entre a eficiência comunicativa e o mau gosto, o que poderia afugentar os interessados nos serviços da empresa, o tom inusitado dos anúncios subvertia a dificuldade de as pessoas lidarem a morte. O sucesso da campanha aumentou a procura pelos serviços funerários e facilitou a abordagem dos vendedores da empresa. Passado o impacto inicial, a atual agência da empresa, a Script, atenuou o tom escancarado dos anúncios da seguradora, mas ainda mantém a ironia de antes:

"O melhor plano é viver. Mas vai que dá errado."
"Reforme sua casa de olhos fechados."
"Se beber, não dirija. Se dirigir, Sinaf."
"Um dia você não acorda e está rico."
"Sinaf, 25 anos. Incrível chegar onde chegamos perdendo um cliente atrás do outro."

Uma campanha da funerária Sinaf: humor negro de resultados


Café com leite
O mais comum, no entanto, é ver mensagens publicitárias que permitem dupla interpretação botarem a perder todo um esforço comunicativo. A Parmalat lançou em 1998 uma campanha para promover sua marca de café solúvel. A ideia era transferir para o café a bem-sucedida imagem da empresa de laticínios, num casamento que reproduzisse a combinação clássica do café-com-leite. A campanha materializou a combinação numa metáfora visual, em que brancos e negros formavam casais. A azeitona da empada, no entanto, foi a construção do texto, com involuntária invocação racista:
"Um café à altura do leite".

- Dizer que o café está à altura do leite é partir da premissa de discriminação ética, de apresentação alegórica que reforça a crença na superioridade do leite, branco, sobre o café, que se toma por metáfora do negro - entende Clóvis de Barros, professor de ética da ECA-USP, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, e coordenador do Espaço Ética.
Dar orientação argumentativa a uma ideia é um desafio que extrapola o meio publicitário, explica o professor Francisco Platão Savioli, da USP e do sistema Anglo de Ensino.

- Bom texto é o que atinge o resultado programado. Bom escritor não é o que escreve correto, mas o que sabe escolher para o seu texto os recursos que obedecem à sua intenção. O controle da forma mais funcional para atingir o efeito desejado é um dos ingredientes da construção textual, mas há outros a controlar, como o respeito por crenças e valores do interlocutor, a adequação à competência interpretativa dos leitores etc. - escreveu ele à Língua.

Exemplum
A busca do ouro na criação de certas peças publicitárias passa muitas vezes por inverter expectativas, ser provocativo e imprevisível, com o que se define o sucesso ou o fracasso de uma comunicação. Controlar o efeito de suas mensagens virou, por isso, o desafio retórico do mundo da propaganda.

Não por acaso, a publicidade bebe na fonte da retórica antiga. A peça criada pela DM9, por exemplo, usou o manjado recurso persuasivo do exemplum, episódio ou caso exemplar apresentado para ilustrar um ponto forte do debate. A recomposição da mecânica discursiva mostraria que a DM9 tinha a tarefa de criar a imagem da devastação da natureza na mente do público-alvo da WWF. Nada parece mais eficiente para dar dimensão de algo do que compará-lo a exemplo palpável e familiar.

Efeitos sociais
Pensemos num primeiro termo de comparação: o que foi devastador e está fresquinho no imaginário popular? O tsunami, que matou mais de 280 mil pessoas desde 2006. Eureka! Mas o que poderia dar dimensão da magnitude de tal cifra? Compará-lo a uma outra devastação que tenha tido ainda maior impacto na memória coletiva, mas saldo de vítimas bem menor. Que tal o World Trade Center? A sacada parecia genial. Até alguém notar que o rei estava nu.

- A publicidade nunca vale por ela mesma mas pelos efeitos que provoca na sociedade. Muito de
suas consequências são produzidas em cadeia para além dos resultados mais imediatos no consumo - diz o professor Clóvis de Barros Filho.

O mundo da propaganda, diz Barros Filho, provoca efeitos sociais que envolvem três níveis de leitura esperados num consumidor de mensagens comerciais. O primeiro grande efeito procurado é a conversão da mensagem em práticas de consumo. A segunda leitura desejada é a representação simbólica do anunciante, a referência a que a marca passou a ser associada após dada campanha. Mas os publicitários não raro ignoram uma terceira dimensão da interpretação de anúncios, avalia o professor da USP: o da cultura ética.

Para o professor, uma mensagem publicitária não só pode alterar o ritmo de vendas e consolidar uma imagem que agrada ao anunciante, como tende a participar de uma determinada maneira de interpretar o mundo e atribuir valor às coisas, que permitem escolhas relativas não só ao consumo.

- É possível conceber uma mensagem que se converta em ganho de consumo e, num segundo momento, em construção positiva da marca, mas se inscreva no mundo social de modo a contribuir para a defesa de valores discriminatórios, xenófobos ou que apequenam a existência humana. Esse cuidado deve ser tomado - diz Barros Filho.

Valores
Foi-se a época em que um anúncio demonstrava a capacidade do produto. Um refrigerante mata a sede, um carro nos leva a um lugar, o sapólio limpa mais. Um dia, veio a sacada e o refri passou a espantar os males da vida, uma cervejinha virou afrodisíaco e um singelo sanduíche, sinônimo de realizações. Até fumante virou atleta nos tempos em que anúncios de cigarro eram parte da paisagem.

O mundo sob o prisma da publicidade é sem nódoas ou crises, pois o menor sinal negativo termina anulado pela exibição triunfal do produto. Quando Coca-Cola dá vida a tudo e o primeiro sutiã resume a puberdade, um sinal é dado e consumido. Mas sempre algo trai a dimensão retórica, o fato de a mensagem ser feita para nos convencer a comprar um peixe. Casos como o dos cem aviões, do café à altura do leite ou do humor funerário mostram que o ruído ocorre quando a publicidade tenta vender seu peixe a qualquer preço.